Depois de Ver... Ações Afirmativas
Pode parecer contraditório eu hoje estar voltando a afirmar que sou negro, quando ainda na semana passada falei aqui mesmo neste espaço sobre a importância de não colocar no outro, ou em si próprio, rótulos e classificações. Mas olhando mais de perto perceberão que a afirmação de uma categoria ou mesmo de uma cultura está acima do ato de rotular. O que trato aqui é sobre a construção de uma identidade cultural de uma etnia, que durante mais de quatro séculos todo tipo de manifestação relacionada a suas culturas tradicionais foram criminalizadas. É a construção cultural de um povo e transcende a ideia de rótulos como classificações ou segmentações sociais.
Nos 30 anos de democracia que experienciamos, o que se pode perceber de fato é que ainda há muito a se desenvolver no Brasil. Viemos de um passado escravagista relativamente recente (pouco mais de 130 anos) e que deixou marcas profundas no cerne da sociedade tupiniquim. Se temos 130 anos da abolição da escravatura nos autos da lei, é notável que na prática ela ainda perdura, em boa parte, de forma estrutural, cultural e sistematizada.
Como consequência desse período e da forma como se deu a escravidão, o negro foi posto à parte da sociedade, lhes sendo negado cultivar culturas, com proibições sociais, “muitas até pautadas na lei”, tais como a de realizar estruturas culturais e religiosas que fossem consideradas não cristãs. Foram-lhes negados empregos, mesmo nas atividades que já desenvolviam antes da abolição, o argumento era que se fosse para pagar pelo trabalho, que essa remuneração fosse a um branco. Para que os imigrantes europeus pudessem trabalhar sobre as terras que lhes foram doadas. Aos negros? Nada.
E foi essa falta de participação no poder e na economia, que ajudou a manter o povo negro à margem da sociedade, e em geral, longe dos espaços de poder. Vivemos hoje em uma democracia representativa, mas será mesmo que temos uma efetiva representação da nossa sociedade no ambiente político?
Vamos às estatísticas. De acordo com a última pesquisa do IBGE, 54% da população do Brasil se autodeclara preto/pardo, só essa informação já dariam um belo texto sobre ser ou não ser “minoria”. Mas o papo hoje aqui é outro. Com essa distribuição populacional, o que se espera é que, em qualquer ambiente ou contexto social que se retire uma amostra, encontraremos uma distribuição parecida. Infelizmente na prática, o que vemos são os negros serem minorias em espaços de poder (lideranças de empresas, espaços políticos, universidades). Enquanto são maiorias em espaços socialmente negligenciados ou marginalizados (desempregados, situação de pobreza e extrema pobreza, presídios, número de mortos por crimes violentos).
Como uma clara herança dos períodos coloniais e do processo de escravagismo, por século, o negro, mesmo após a abolição, foi colocado à margem da sociedade e muitas vezes impedido de formar agrupamentos e instituições sociais que lhe empoderasse.
Zygmunt Bauman em sua bibliografia defende que a pobreza é algo que se retroalimenta, aprofundando a desigualdade já existente, e levando em conta teóricos como Paulo Freire e Milton Santos, podemos inferir que a educação seria um dos principais elementos a serem focados para romper esta lógica segregacionista.
Foi com o objetivo de encontrar metodologias para fazer a compensação e promover justiça social e educacional a seguimentos marginalizados pela sociedade, que se constituiu a criação das ações afirmativas, que visam realizar uma distribuição educacional mais igualitária, e utilizá-la assim, como instrumento de transformação social, idealizando o rompimento do preconceito social e da concentração de privilégios.
A lógica excludente presente nos espaços políticos, sociais e acadêmicos para com grupos menos privilegiados torna-se evidente ao compararmos os números com já apresentados anteriormente. Em 2018 foram eleitos apenas 27% de negros/pardos para ao congresso nacional, apesar de somar 46,7% dos candidatos. Apenas 10% de negros/pardos estão presentes em cargos de chefias e lideranças.
Há dois pontos a serem destacados sobre as ações afirmativas, um é o caráter temporário dessas ações, elas são ferramentas institucionais que objetivam garantir educação de qualidade a segmentos sociais historicamente excluídos nos diversos níveis de ensino e oriundos de diversos espaços sociais. O outro ponto a se observar é amplitude que as leis e ações afirmativas têm. Estas ações compensatórias são passiveis de localização e visam respeitar as diferenças nas localidades na qual são aplicadas, como é o caso de estados do sul do Brasil que levam em conta a distribuição étnica local para determinar o número de vagas reservadas aos cotistas. Considerando também o contexto social e a alta concentração de população com pele branca, que diverge das demais localidades do país.
Pode-se dizer que a desigualdade social é um fator sistêmico e sistematizado; o que não se pode é aceita-lo como algo não solucionável. As ações afirmativas, que nem de longe são o modelo ideal para a resolução dos problemas da desigualdade, são apenas mais alguns passos a serem dados na direção da dissolução deste fator social, o qual provém de heranças históricas.
Empoderar e dar força a grupos étnicos e sociais tão marginalizados ao longo da história é mais do que importante, é necessário. Além da reparação histórica a ser considerada, há também a necessidade de equalização dos poderes, para que possamos ter uma democracia realmente representativa.